Sunday, October 05, 2008

Quando deixar o que se pode fazer hoje para fazer amanhã pode lhe poupar muitos problemas

Haverá um tempo que certamente comprar ou vender um veículo – automóvel – usado, será uma coisa impensável. Porém no final do século XX isto foi bastante comum. Em um país pobre, como o Brasil, isto era muito usual.

Foi neste cenário que anunciei no Jornal de Classificados o meu carro – um Gol – veículo da fabricante VW. Era um Gol verde claro, BX. Um carro com motor não arrefecido por água, mas sim por ar. Usava o mesmo sistema do grande sucesso em carros populares desta fabricante – o Fusca. Este sistema havia sido desenvolvido ainda nos tempos da segunda guerra para que veículos pudessem ser usados em regiões desérticas, como o norte da África, local de grande interesse e importantes campanhas Nazistas.

Embora este carro servisse aos meus propósitos estava querendo um carro mais novo. Comprar carro novo nem pensar. Teria de pegar o dinheiro da venda deste e usar como parte do pagamento de outro.

Havia comprado este carro de um colega de trabalho à época – o Ronald. Na verdade havíamos feito uma troca. Ele ficara com um Uno que eu tinha – e que valia mais do este Gol – era um carro muito mais novo – mas também muito mais problemático. O Ronald me passou o seu carro – o Gol, e ficou com o Uno, e as parcelas de consórcio que ainda restavam. Essa troca havia ocorrido a dois anos atrás.

Quando resolvi vender o Gol dei-me por conta que não havia trocado a documentação do veículo para o meu nome. Naquela época isto era muito comum, embora o correto fosse fazer a transferência no momento da compra. Não havia ainda o que ocorreu muitos anos mais tarde que foi o endurecimento das leis de trânsito, e o surgimento das pesadas e fartas multas que advieram, bem como a responsabilização em primeira instância do proprietário do veículo – o proprietário de direito.

Mas esta questão era trivial. Bastava conduzir o veículo e a documentação de transferência ao Departamento de Trânsito, procedendo uma vistoria e a efetiva transferência de propriedade. Fiz este processo em uma manhã. Procurava evitar intermediários sempre que possível. E este período era o verdadeiro reinado dos “Despachantes”. Eram pequenos escritórios, que ficavam às dezenas nas quadras circundantes dos Departamentos de Trânsito. Dentro destes departamentos havia uma promiscuidade enojante entre os funcionários públicos e estes prestadores de serviço. Era também a época dos favores, das benesses e principalmente do maldito “jeitinho”. O cidadão poderia fazer tudo sozinho, mas obter uma informação era a coisa mais difícil que podia existir. Simplesmente lhe sonegavam isso para que tivesse de depender dos despachantes. Dentro dos ambientes de atendimento era uma situação deprimente. Os cidadãos em fila, aguardando seu atendimento, quando de repente adentrava um despachante cheio de papéis na mão, passava ao lado da fila e era recebido efusivamente por um funcionário burocrata que estava escondido atrás do balcão. Trocavam sorrisos, abraços, piadinhas que somente eles entendiam e lá se iam - o despachante, acompanhado de seu “amigo” para os interiores do departamento, resolver de forma privilegiada os problemas dos seus clientes.
Eu ficava indignado com isso. Reclamava na fila, mas não adiantava nada. Era um feudo.

Resolvido o problema de documentação e eu já de posse dos novos documentos de transferência nada mais era impedimento que eu o transacionasse.

---- Alô, pode falar.
---- Eu vi um anúncio de um automóvel Gol .....
---- É isso mesmo.
---- Posso ver o veículo?
---- Claro vamos marcar, anote aí o endereço: .....

Na data acertada fui até a garagem para mostrar o veículo ao comprador interessado. Ele gostou muito do carro. Era exatamente o que ele queria.

--- Como você vai pagar?
--- Vou lhe pagar em dinheiro. Ok?
--- ok.

Marcamos um encontro no dia seguinte para efetivarmos a transação.

No dia seguinte, recebi-o pela manha, no mesmo local – uma garagem onde eu alugava um Box. Lá ficavam mais de uma centena de carros.

--- Olha Vinicius, estou aqui com o dinheiro. Está na minha cueca.

Era uma valor que em notas da época tinha o volume aproximado de um montinho de 5 por 10 cm. Ele tinha muito medo de ser assaltado ou coisa parecida, por isso guardou o dinheiro neste inusitado – e asqueroso - lugar.

--- Mas antes de fazermos o negócio eu queria fazer algo que não fiz ontem. Eu gostaria de checar a documentação. Você entende né?

--- Claro. Aqui estão os documentos. Estendi a mão e lhe passei os documentos do carro.

Ele se aproximou do carro, pediu que eu abrisse a tampa frontal para examinar o número do Chassi. Vi que ele fazia movimentos de olhos e cabeça do papel para o chapa metálica presa ao veículo. Aqueles olhos iam e vinham, naquele movimento de leitura de conferência. Uma vez, duas vezes, três vezes, retornava ao processo do início e assim ia.

--- O que foi? Tem algum problema? – Perguntei.

Ele lentamente se voltou para mim e disse:

--- Vinícius, estes números são diferentes.

--- Como assim? Deixa eu ver.

Incrédulo, peguei o papel de suas mãos e comecei a conferência. Não eram os mesmos números. Na verdade parte do código era idêntica – a parte inicial e a parte final eram as mesmas, mas no centro haviam letras que eram diferentes.

Inclinei-me para trás, pensativo, recostando as costas no carro.

--- Mas não pode ser, tirei estes documentos semana passada.

Peguei os documentos anteriores, os que estavam ainda em nome do meu amigo, e lá estavam os mesmos números do documento novo. Então concluí que o problema vinha de muito antes.

Neste momento estávamos os dois – eu e comprador – um tanto confusos. Não sabia naquele momento o que fazer, nem o que dizer, até que o comprador me chamou a um canto e disse:

--- Vinícius, se este carro tem problemas, não se preocupe, apenas me avise e desfazemos o negócio, eu não vou falar nada.

Aquilo soou como uma bomba na minha cabeça. Ele estava supondo que eu era um bandido e que estava tentando passá-lo para trás. Fiquei atônito, mais do quando vi que os números de fato não eram iguais.

--- De forma nenhuma. Vou até o Departamento de Trânsito ver o que ocorreu. Deve ter havido algum engano.

--- Bem, meu cunhado é Delegado de Polícia, se você quiser podemos ir falar com ele para ver o que acha. – Disse-me o comprador.

Neste momento tive uma sensação muito estranha. Era como se eu estivesse perdendo o controle da situação. Meu carro estava irregular – ok, mas daí me apresentar na polícia e dizer isso? Poderia ficar com o carro apreendido até que se resolvesse isso. Poderia levar meses. Eu não poderia ficar sem o carro, seria um transtorno e tanto. A situação começava a se tornar caótica.

--- Ok, vamos até lá – Respondi.

O meu dia já tinha virado de cabeça para baixo. Dirigimo-nos ao Palácio da Polícia – onde ficava também o departamento de trânsito.

Subimos uma escada e entramos em uma sala. Havia um balcão e o comprador se apresentou e pediu que chamassem o delegado Fulano. O delegado veio. Cumprimentou seu cunhado e ouviu a explicação dele com os meus documentos nas suas mãos. Disse-lhe o delegado o seguinte, não olhando em nenhum momento para mim, que estava ali ao lado no balcão.

--- Olha Fulano, isso aqui é rolo. Sai fora porque é trapaça.
Eu fervi e gelei. Primeiro achei uma falta de respeito sem parâmetros. O sujeito, na minha frente falando ao outro que eu era desonesto. Sem me conhecer, sem saber nada ao meu respeito, sem ao menos considerar que estava ali justamente pelo contrário disso. No segundo momento – que se afastava do primeiro por alguns centésimos de segundo – pensei que poderia até mesmo ser preso naquela momento. Diante de uma “otoridade” com aquele pensamento idiota e aquela falta de consideração – tudo podia acontecer.

O comprador – agora já quase meu amigo – intercedeu a meu favor.

--- Olha Fulano, eu conheço este rapaz há pouco, mas já pude perceber que se trata de alguém sério e se há um problema aqui ele deve ser vítima também.

Aquelas palavras causaram efeito no delegado. Não na sua educação – até porque para isto ele teria de nascer de novo – mas ao menos na forma que ele encarava à mim e a situação.

--- Bem, para concertar isso vai dar uma tremenda mão de obra – Disse isso e começou a explicar o processo todo. Minha mente não ouviu a explicação e nem os passos que ele relatava. Era um rosário de procedimentos, fichas, solicitações.

Meu amigo, quer dizer, o comprador, agradeceu a seu cunhado e saímos daquela sala. Descemos a escada conversando e já nos despedindo um do outro. O Negócio estava totalmente sepultado.

--- Olha, fulano – Lhe disse – eu te levo de volta até a garagem.

Ao descer as escadas passamos pela sala de recepção, onde ficava o atendimento do departamento de trânsito. Estava cheia de gente. Cidadãos e os despachantes. Passamos, saímos do prédio e já estávamos a uns 10 passos do carro quando parei, me virei em direção do comprador e lhe disse:

--- Fulano: Tivemos uma situação muito interessante aqui. Você gostou demais do carro. Eu preciso vende-lo. Perdemos uma manhã inteira. Você está com esta cueca cheia de dinheiro. Vamos fazer o seguinte. Se em 20 minutos eu conseguir acertar esta documentação, lhe trouxer ela aqui, na rua, certinha, como deve ser, você mantém a nossa negociação?

--- Vinicius, você não pensa em falsificar este documento, não?

--- Claro que não. O que eu estou lhe pedindo é que me dê apenas mais 20 minutos. Se eu não resolver isso nosso negócio está acabado e vou tratar de resolver esta questão dure o tempo que durar.

--- Mas o meu cunhado falou que....

--- Eu sei disso, mas o que eu estou te pedindo são estes 20 minutos....

--- Bem, se você me trouxer a documentação certinha, não vejo problemas, mas tem de ser rápido mesmo porque já é quase meio-dia e eu tenho de ir até Canoas ainda...

--- Ok.

Dei meia volta e retornei à sala principal do Departamento de Trânsito. Peguei o documento novo e olhei-o com calma. Vi um nome carimbado e uma assinatura de um funcionário no documento. Era uma mulher. Cheguei ao balcão, como os despachantes costumavam fazer, e chamei um funcionário que estava sentado em uma mesa:

--- Quero falar com a dona fulana?

--- Ah, sim, ela fica lá – apontando para o interior do departamento.

Já era quase meio-dia. A maioria dos funcionários já haviam saído para o almoço. Assim foi fácil identifica-la. Ela estava sozinha, na sua mesa em uma enorme sala com umas 20 ou 25 mesas de trabalho.

Fiz um sinal breve com a mão como a dizer que queria ir até ela. O funcionário respondeu com outro aceno do tipo: “Vá!”

Ultrapassei o balcão por uma tramela que havia e fui direto falar com dona fulana.

--- Fulana? Já estava a frente da sua mesa – Semana passada fiz um documento aqui – seu nome consta nele – e acredito que ouve um erro de digitação, porque o número do chassi do meu carro é este – apontando para uma folha de papel raspada – e o número que foi colocado no documento é outro. Preciso que isto seja resolvido.

--- Deixa eu ver. – Ela disse. – É mesmo, e inclusive estou vendo que o carro é um Gol e estas letras no meio dizem que é um Fusca....

--- Pois é. Veja só que confusão.

--- Vamos fazer o seguinte: Senta aí – disse-me apontando em pequeno sofá que ficava ao lado de sua mesa – que eu fazer um outro para você.

Quase não acreditei no que estava ouvindo. Mais surpreso que eu só quem ficou foi o comprador que me aguardava do lado de fora quando lhe entreguei em mãos o documento certinho, vindo de dentro do Departamento de Trânsito – isto é – sem qualquer chance de ser inválido ou adulterado.

Negócio fechado.

Depois pensei. E se eu tivesse feito a documentação deste carro desde o momento que eu havia comprado? Como este erro de numeração vinha acompanhando o veículo já por algum tempo, muito provavelmente eu teria de fazer o procedimento que aquele delegado cretino orientou, teria de gastar um monte de dinheiro com despachantes, teria de ficar com o carro parado por algum tempo até que tudo se resolvesse. Que dor de cabeça. Evitada porque deixei para amanhã o que eu poderia ter feito hoje. Não tivesse o nome daquela mulher naquele documento e a distância de datas ser somente uma semana e certamente o processo teria de ser outro necessariamente.

O pior de tudo?

O pior de tudo foi receber e ter de conferir aquele dinheiro que havia passado horas naquela cueca fedorenta!

Um dia na História - 11/setembro/2001

Quantos dias na nossa vida se passam sem ao menos deixar um vestígio? Como se nunca tivessem ocorrido, ou mesmo que sua falta não seria notada.
Na verdade a maioria dos nossos dias são assim. É o que convencionamos chamar de cotidiano.
Pois no dia de hoje o mundo parou. Parou para ver e assistir algo extraordinário. Para assistir a uma tragédia monumental. O ataque terrorista ao World Trade Center, em Manhattan – New York, ao Pentagon.em Washington. A tragédia “ao vivo” da Big Apple. Inacreditável a audácia empreendida na ação deste grupo terrorista ainda não identificado. (São 16:32 – Hora de Brasília de 11.09.01). De quatro alvos conhecidos, três obtiveram êxito. (O quarto avião caiu).

Bem, mas não é esse o centro da reflexão que quero aqui realizar. Até mesmo porque os fatos vão ser esclarecidos e detalhes ainda totalmente ignorados serão trazidos a tona, o que fará com que eles fiquem plenamente registrados historicamente.

Quero falar de um dia diferente. Chamam a atenção porque são poucos, raros. São marcas indeléveis que levamos adiante. Destacam-se da multidão. Fazem nossa adrenalina jorrar na nossa corrente sangüínea, num misto de medo, estupefação e irrealismo neutralizante. Nosso consciente interrompe o torpor em ciclos, que podem ser de segundos, minutos ou horas, como se dissesse: -- Mas isso está mesmo acontecendo?? É o “beliscar” que nosso consciente dá ao ato automático, ao estado de torpor a que somos submetidos. Obtida a resposta de que é sim, que é um fato real, deixamos nos absorver novamente, até a próxima “chamada”.

É isso que nos deixa marcas. Sem dúvida é um fato relevante.

As vezes somos submetidos sozinhos a esses estados, por fatos que concernem e dizem respeito somente a nós. As vezes a grupos, as vezes a grandes grupos. E raras, raríssimas vezes, ao mundo todo. O de hoje é desse último tipo. Quase como uma alucinação coletiva, um estado de torpor de dimensões inimagináveis. É claro que essa amplitude e simultaneidade se deve ao patamar tecnológico da humanidade, que hoje assiste o desenrolar destas questões em cada aparelho de televisor, nas suas casas e trabalhos em todos os lugares do mundo. Câmeras diversas, ângulos favoráveis, tudo ali, ao alcance da retina, ao alcance do ouvido, expulsando a imaginação da nossa mente. Não há o que imaginar quando os fatos são tão surpreendentes.

Fatos históricos dessa magnitude são poucos. Não conheci nenhum superior a esse. Mas certamente houve. Não os vivi. Vivi outros, importantes, mas não surpreendentes dessa forma.

Muito a história contará a respeito. Eu fico com as imagens impressas na minha mente e com o sentimento impresso na minha alma. Enfim, um dia que ficará em outra ordem, em outra escala, a qual não pertence o cotidiano, o qual quero rapidamente voltar.


11/09/01 - 16:00h